sexta-feira, 19 de agosto de 2011

EDUCAÇÃO FAMILIAR: OS VALORES TRANSMITIDOS PARA AS CRIANÇAS REMANESCENTES INDÍGENAS DA COMUNIDADE DE ALDEINHA DE MISSÃO DO SAHY, BAHIA

Tatiane Patricia da S. Santos; Valéria Macedo Gonçalves
Graduandas em Pedagogia, Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Campus VII Senhor do Bonfim. tatiamortathy@hotmail.com;
Maria Gloria da Paz
Doutora em Educação pela UFRN, Professora do Campus VII da UNEB Senhor do Bonfim, Bahia. gogodapaz@yahoo.com.br



RESUMO

O presente estudo teve por objetivo investigar como é que são transmitidos os valores culturais pelos familiares das crianças remanescentes indígenas da comunidade da Aldeinha de Missão do Sahy. Sabe-se que muitas histórias sobre índios são contadas e vão desde as transmitidas em livros didáticos até as contadas por pessoas comuns e todas elas têm em comum a mesma premissa: a tentativa de retratar a cultura desses povos; o que se torna algo de grande complexidade, em virtude de serem vários grupos e cada um deles ter vivências diferenciadas. Boa parte dessas histórias, contadas nos livros didáticos e nos romances de Literatura Brasileira, mostram o índio belo, sedutor, com penachos, de tangas, cultuando seus deuses, sempre arredios, ignorantes, fazendo a dança da chuva e emitindo sons de uhuhuh, como no cinema americano. A Missão de Senhora das Neves do Sahy, situada no Município de Senhor do Bonfim, no Território do Piemonte Norte do Itapicuru; foi instalada por volta de 1697 ao sopé do monte Tabor, pelos Padres Franciscanos da Ordem Menor. Atualmente é uma comunidade remanescente com uma população aproximada de 3.000 habitantes possui um núcleo comunitário conhecido como Aldeinha ou Tribo; este local concentra em torno de 10 famílias, todos são parentes, que tem como principal fonte de renda o artesanato de cipó. O trabalho artesanal desse povo é passado de geração a geração, tanto os adultos como as crianças e jovens trabalham nesse processo. Os matrimônios geralmente acontecem entre os próprios primos, para que não se percam os laços sanguíneos e caso aconteça de um membro do grupo casar-se com uma pessoa de outra família, deverá residir em outro espaço, fora da Aldeinha. Com base nessa argumentação, nos surgem alguns questionamentos: quem é o remanescente indígena da Aldeinha? Como é que são transmitidos os valores culturais para o grupo? Como é a atuação da família da Aldeinha no processo de transmissão e preservação dos valores? Como é que se dá essa transmissão para as crianças remanescentes da Aldeinha em Missão do Sahy?

Palavras-chave: Palavras- chave: valores culturais- índio brasileiro- criança remanescentes da Aldeinha de Missão do Sahy.


1. INTRODUÇÃO

O presente estudo é resultado de um trabalho de conclusão do componente curricular História e cultura afro-brasileira e indígena, oferecido no 4º semestre do Curso de Pedagogia do Campus VII da UNEB, objetivando investigar como é que são transmitidos os valores culturais pelos familiares dos remanescentes indígenas da comunidade de Aldeinha de Missão do Sahy.
Dentre as atividades desenvolvidas para a concretização deste trabalho, destacam-se, especialmente, as visitas de aproximação e conhecimento dos moradores, a observação e a coleta de depoimentos através de entrevistas.
Sabe-se que muitas histórias sobre índios são contadas e vão desde as transmitidas em livros didáticos até as narradas por pessoas comuns, todas elas tomam para si a mesma premissa: a tentativa de retratar a cultura desses povos a partir da visão colonialista; o que lhe confere grande complexidade, em virtude destes povos estarem divididos tanto geograficamente quanto culturalmente em vários grupos distintos.
Geralmente, as histórias contidas nos livros didáticos e nos romances de Literatura Brasileira, mostram o índio belo, sedutor, com penachos, de tangas, cultuando seus deuses, sempre arredios, ignorantes, fazendo “a dança da chuva” e emitindo sons de uhuhuh, como no cinema americano, o que evidencia a carência de informações e esclarecimentos, pois não temos conhecimento razoável, como afirma Cunha (2002, p. 11): “Sabe-se pouco da história indígena: nem a origem, nem as cifras de população são seguras, muito menos o que realmente aconteceu”.
Emerge daí, a indagação: como podem ser considerados ignorantes os povos que transmitem seus costumes, seus conhecimentos e ensinamentos de geração a geração, sem qualquer consulta ou contato com os referidos povos, embora sejam identificadas a sua importância e a sua influência para a configuração cultural do nosso país? É evidente a necessidade de estudos que sejam capazes de desvelar saberes, propiciando a valorização e o respeito à cultura dos povos indígenas e seus descendentes.

Rumores sobre valores culturais indígenas

Com a finalidade de aprofundar conhecimentos sobre o que são chamados rumores culturais, trazemos informações de Santos (2009), a respeito dos povos da fase Marajoara, descoberta através de estudos feitos no baixo amazonas. Segundo o autor:

Os povos da fase Marajoara vieram do noroeste da América do Sul e chegaram à ilha de Marajó provavelmente por volta do ano 400 da nossa era, ocupando a parte centro- oeste da ilha. Nessa região construíram habitações, cemitérios e locais para as cerimônias. (p. 123).

Os primeiros rumores da cultura dos povos em questão vieram com as descobertas de cerâmicas, nos estudos feitos no baixo amazonas por volta do ano 1.000 A.D.. Acredita-se que era uma sociedade dividida em camadas sociais, com um governo forte e com certa divisão ocupacional de trabalho. Uma sociedade mais complexa do que qualquer outra que os europeus encontrariam em território da Amazônia. Segundo antropólogos, físicos e arqueólogos, não se pode dizer muito sobre os pontos pelos quais os índios passaram nem o percurso que seguiram em sua ocupação e, nem como evoluíram biológica e culturalmente após penetrarem na área correspondente ao atual Brasil. (Melatti, 1994).

Ao falar acerca dos povos indígenas, fazem-se imprescindíveis certos cuidados, a fim de desmistificar a ideia simples e reducionista de que o índio é um ser sem cultura, como muitas vezes aparece retratado nas telas de cinema e/ou ilustrada pelos romancistas. Para prosseguimento da discussão, convém que conceituemos cultura, na definição de Ribeiro (1997):

Herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo co-participado de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimento da subsistência, de normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam sua experiência, exprimem sua criatividade artística e a motivam para a ação. (p.127).


Quando arte indígena é pensada, costuma-se reduzi-la aos objetos produzidos e costumeiramente as “qualidades artísticas” de tais objetos são atribuídas de acordo com nosso ponto de vista e com os critérios de nossa civilização, segundo Santos (2009, p.112) “a arte indígena representa mais as tradições de sua comunidade do que a personalidade de quem faz.” Logo, vale dizer que a arte é para o indígena uma representação das vivências, dos costumes, dos festejos e das cenas do cotidiano.

Sob uma perspectiva ampla, devem ser compreendidas como valores culturais indígenas suas vivências e práticas, desde a maneira como lidam com a natureza, passando pelas formas de organização e a hierarquia dos grupos, também, o modo fazer e de distribuir o trabalho entre os membros da tribo e ainda como produzem arte, pinturas corporais, adornos e cerâmicas e etc.

O que se sabe sobre o índio brasileiro?

Os índios são identificados, ainda hoje, como dois grandes grupos culturais: o grupo dos silvícolas que vivem nas áreas florestais, praticando uma agricultura desenvolvida e diversificada que, associada às atividades da caça e da pesca, lhes permite ter moradia fixa e a dos campineiros, que vivem nos cerrados e nas savanas, com uma cultura bem menos complexa e uma agricultura menos variada que a dos primeiros. (Santos, 2009)
Não se pode dizer com precisão o quanto se sabe a respeito do índio brasileiro. De acordo com Melatti (1994):

Os europeus denominaram os habitantes encontrados na América de índios, por pensarem estar pisando as terras das Índias; com este termo, índios os conquistadores rotulavam as populações mais diversas desde o norte até o sul do continente americano. (p.19)

A definição que se tem de índio é diversificada, e muitas vezes distorcida pela falta de acesso a informação. Mas, isso não se resume aos leigos no assunto, muitos autores ainda trazem uma imagem negativa e vaga sobre esses povos, a mesma imagem vista pelos primeiros europeus, que aqui chegaram e mesmo sem observar e conhecer a sua cultura os denominou de Índios. E de acordo com (Melatti, 1994), são vários os critérios tomados para definir o que seria o indivíduo aqui encontrado; o racial, o legal, o cultural, o de desenvolvimento econômico e o de autodefinição étnica.
Com relação ao que sabemos sobre o índio brasileiro, nada se compara aos registros dos livros didáticos. Considerando que o imaginário das pessoas se constrói a partir de fragmentos dos livros, das imagens da mídia e de alguns valores familiares. O depoimento de Celmar Santos(2008) em sua monografia, relata de que maneira foi construído o seu imaginário sobre índios:

Tomando como exemplo o meu próprio imaginário, desde muito cedo ouvi muitas histórias e lendas sobre os índios, nasci numa cidade mineira cujo nome vem do tupi-guarani, Manhumirim, que significa “rio pequeno” (índios Botocudos); os índios viveram em mim através das histórias que ouvia, sendo elas verdadeiras, falsas, boas ou más. Essas histórias construíram em mim confusos sentimentos, em que às vezes amava-os, odiava-os ou admirava-os. Amava porque achava maravilhosa a forma como eles se respeitavam, e gostavam da vida; odiava porque tinha medo, sempre ficava imaginando que um índio ia voltar e me devorar juntamente com minha família, pois construí o meu imaginário a partir da premissa de que os índios comiam gente. (2007, p.14)

Este relato conserva alguma semelhança com o imaginário da maioria dos remanescentes de Missão do Sahy, o que acarreta acentuado distanciamento e consequentemente em um não autoreconhecimento, o que muitas vezes implica na perda de alguns benefícios que por lei foram instituídos para estas comunidades que não sendo nem brancos e nem índios, ficam a margem do desenvolvimento. Uma ideia preconcebida e transmitida pelos ancestrais se sobrepõe, uma vez que foram levados a mudar os costumes, assimilando novas maneiras de convivência, ligadas a matriz europeia.



Aldeinha de Missão do Sahy: o que se sabe sobre a transmissão de valores e costumes para as
crianças?


O núcleo comunitário denominado “Aldeia” ou “Tribo” concentra em torno de 10 famílias, todos são parentes e têm como principal fonte de renda o artesanato de cipó. O trabalho artesanal da cestaria é passado de geração a geração, transformando-se num fio que mantém vivos os laços familiares desta comunidade, fortalecendo inclusive os matrimônios que tradicionalmente acontecem entre os parentes mais próximos, os primos.
Novais e Silva (2010), em um trabalho recente, realizado junto aos moradores da Aldeinha, afirmam que

Está tribo de remanescentes indígenas é constituída por 10 famílias com o total de 52 habitantes nos quais temos 35 adultos e 17 entre crianças e adolescentes os remanescentes desta localidade todos possui os mesmos laços sanguíneos, pois é comum matrimônios entre os mesmos, ou seja, entres primos onde esta cultura está impregnada até os dias de hoje com ressalva que nos tempos atuais estes matrimônios não acontecem com tanta frequência, no entanto ocorrendo ao contrário o remanescente casando-se com outra pessoa de fora da comunidade o mesmo não poderá morar na aldeia, terá que procurar outro lugar para morar, pois na localidade não há mais espaço físico e também porque a sua cultura não admite pessoas de outras comunidades.


O conhecimento que se tem sobre a origem deste lugar, denominado Aldeinha, é ainda muito incipiente, não vai além da localização geográfica ou de algumas informações elementares sobre a origem, os costumes e a organização do grupo. Alguns destes fragmentos foram obtidos através das narrativas de sua matriarca dona Edite, que a princípio contava com desenvoltura e orgulho como tinha criado aquele lugar onde reside com a sua família, mas hoje devido a procura de muitos curiosos sobre o assunto, a família e ela mesma não se dispõem mais a fornecer informações; os motivos alegados são os mais diversos, e vão desde a necessidade de preservação da intimidade coletiva da família, até a questão de obtenção de algum ganho extra com essas narrativas.
Segundo a matriarca dona Edite, o local, afastado do centro do povoado, foi habitado por ela e seus filhos logo após o falecimento do seu esposo. Viúva e sem ter uma situação econômica que possibilitasse o sustento dos filhos menores, contudo sem querer doá-los para serem criados por algumas famílias de melhores condições, resolveu isolar-se e sobreviver daquilo que a mata poderia prover: a caça, a pesca, frutos silvestres, a comercialização do oricuri, uma espécie de fruto de uma pequena palmeira do sertão do Nordeste e a confecção de pequenos cestos de cipó.

A sua principal fonte de renda é o trançado que por muitas décadas só os homens da família trabalhavam com essa manufatura mais ao longo dos anos as mulheres ganharam gostos e espaços onde ocorrem a prática dessa manufatura até os dias de hoje; desse modo, toda comunidade tira o seu sustento através da confecção desses objetos que com o passar dos anos foram sendo aperfeiçoados, ganhando novos formatos mas tendo como matéria-prima o cipó caititu e o cajal, o bambu e a taboca, os quais são plantas nativas da região. (Novais e Silva, 2010)

Com o melhoramento das técnicas até então primitivas, o artesanato foi criando o seu espaço de comercialização e transformando-se em renda principal desta comunidade familiar e a exemplo de outros produtos artesanais confeccionados por comunidades similares, os produtos por eles produzidos já são deslocados para outros espaços comerciais como afirmam (Novais e Silva, 2010), em um levantamento realizado em 2010, para estudo sobre esta pequena comunidade.

Nesta comunidade são confeccionados inúmeros objetos como: caçoas, cestos, bicicletas e burricos decorativos, luminárias e móveis: banquinhos, namoradeiras, sofás entres vários outros com preços que variam entre R$ 8,00 á R$ 200,00 por peças, estes produtos são comercializados nas feiras da região, na feira de Missão do Sahy e em feiras artesanais; além de receberem encomendas de todas as partes do país também já forneceram alguns produtos para fora do país.


A questão indígena é vista pelas crianças do presente, como um acontecimento do passado, mas alguns se reconhecem como descendentes, “as casa igual a gente”; ou ainda quando lembram que os pais falam coisas sobre índios. “ Eles mora agora, né, eles faz agora coisa deles,[...]. Meu tio sabe um bocado de coisa de casa de barro. Ele vende um bocado de coisa. Vende assim... flecha dos índio, verdadeiro, das que eles fazem lá na Passagem Velha”.
O histórico desta região remonta-se ao passado por volta de meados do século XVII, em que foi instalada a Missão de Senhora das Neves, localizada no atual Território do Piemonte Norte do Itapicuru, no município de Senhor do Bonfim, Bahia, que ajuntou em aldeamento índios sobreviventes das descidas e das guerras justas. Algumas fontes afirmam que esta missão foi um provável aldeamento, no qual se ergueu um convento dos Padres Menores, ligados à missão de província de Santo Antônio do Recife. Para o Frei Venâncio Willeke (1979), este era um local de descanso e abastecimento de víveres dos padres em viagens, é uma das missões mais velhas do Brasil, com 314 anos, cuja existência também se confirma nas narrativas de Spix e Martius, em sua passagem pelo sertão da Bahia.
A origem desta localidade até bem pouco tempo não tinha visibilidade, contavam-se histórias, lendas e contos imaginários, porém, sem mencionar a importância do povoado para o Patrimônio Histórico do Município de Senhor do Bonfim. Provavelmente por desconhecer tal fato, as escolas não demonstravam interesse e nem instigavam os seus alunos a buscar o conhecimento sobre de sua identidade. Fora dos muros escolares, as crianças falavam de rituais religiosos, de costumes e valores sem que os professores percebessem que estes fragmentos estão ligados diretamente a sua ancestralidade, e mesmo diante da modernização da vida, estes fragmentos continuam resistindo ao desgaste natural do tempo e as assimilações, sendo de qualquer maneira transmitidos pelos grupos familiares e pelos mais velhos da comunidade.
Quanto às fontes escritas, encontram-se a disposição outros trabalhos, embora sobre diferentes temáticas, contribuem com informações sobre a criança remanescente indígena de Missão do Sahy. Uma é um trabalho de conclusão de curso de Celmar Santos (2008), que aponta valores e elementos culturais da comunidade, nas narrativas das crianças entrevistadas, a outra é de autoria Maria das Neves Dourado, que trata dos elementos culturais da comunidade como temas de estudo nas escolas da localidade.
Em Simões (2008) observa-se que as crianças ao falarem sobre índios, identificam os moradores da Aldeinha, como tais, e esse reconhecimento atesta a simbologia com a qual esta comunidade é identificada, destacando como característica o artesanato de cipó ou a palhinha como elas denominam o trançado de cipó. “Eu já fui lá na tribo (Lua); e “ Nós vimos eles fazê palhinha” (Bola).
Ainda segundo Simões (2008), os conteúdos escolares se misturam ao imaginário da população quando as crianças falam sobre a sua origem:

Grande parte das crianças expressa conhecimentos recebidos através da escola: “os portugueses vieram pra cá, mataram os índios, foi aí que existiu a gente”, de que os índios foram os primeiros a chegar ao Brasil, que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil e que “os portugal” (sic!) chegaram aqui, mataram e trocaram os índios por dinheiro e navios: “Repara, os branco eles tinha as tribo dos índio aí eles pegava e trocou os índio pelo navio aí trocaram os índio”.


Neste relato, a criança imagina que os remanescentes são originários do que restou da chacina dos indígenas da região, o que de certa forma se confirma na historiografia regional. De acordo com Machado (2007, p.25), “Os índios que restaram do massacre perpetrado pela conquista dos portugueses foram aldeados pelos padres franciscanos, que instalaram na localidade Sahy uma missão religiosa autorizada pela Casa da Torre de Garcia D’Ávila”.
Os depoimentos da criança autodenominada Cachorrinho “Eles pegava igual os escravo e trocava, trocava com dinheiro”, “Repara, os branco, eles tinha as tribo dos índio, aí eles pegava e trocou os índio pelo navio, aí trocaram os índio.” apontam para a tentativa de escravização do indígena, a tentativa de transformá-lo em moeda de troca, o que não frutificou, devido a condição de liberdade que o índio trazia em si, preferindo muitas vezes a morte a se deixar escravizar.
Dourado (2008), em seu trabalho de conclusão de curso, faz uma alusão a uma suposta comercialização de indígenas escravizados, perpetrado pela Casa da Torre:

[...]em 1721, num episódio dramático, Martin de Nantes evitou a todo custo que o fazendeiro e colonizador Garcia D’Ávila II levasse todos os índios da aldeia de Missão do Sahy como escravos para vendê-los aos senhores de engenho da região. Garcia D’Ávila e seus herdeiros foram os primeiros desbravadores a chegar a essa região.

Escravizados ou não, a mão de obra indígena, era de grande importância para algumas áreas de trabalho, e os padres recebiam correspondências de diversos colonos, solicitando indígenas para o trabalho. Em PAZ (2004,p 133),encontramos uma citação de uma carta, cujo teor registra uma queixa contra a atitude dos padres em não fornecerem índios para o trabalho nas minerações de salitre.

Tenho noticias que Vossa Paternidade nas ocasiões que se lhe pedem os índios da sua Missão, que são necessários, para o trabalho do salitre, os nega, e que os está dando ao mesmo tempo, a várias pessoas particulares, para o seu serviço; e como o de Sua Magestade, que Deus guarde, prefere a qualquer outro, não é justo que este se não faça,e se atraze por cauza de não ter índios com que se trabalhe naquelas oficinas, sendo os da Missão de Vossa paternidade dedicados para esse feito e não para outro fim; nestes termos me parece encarregar a Vossa Paternidade que todas as vezes que o Administrador Antonio de Almeida Velho, ou o ajudante Luiz Antunes, mandar pedir a Vossa Paternidade índios para o trabalharem na fábrica de salitre, lhos remete Vossa Paternidade prontamente os que houverem mister, e fio no zelo de Vossa Paternidade que não terá a menor repugnancia neste particular; por ser em prejuizo do serviço de Vossa magestade, para o qual está Vossa Paternidade também obrigado a concorrer de sua parte, como vassalo que é do dito senhor;Deus guarde a Vossa Paternidade. Ba. E Março 12 de 1706. Luiz Cesar de Meneses.


Nos depoimentos das crianças, os resquícios de uma possível escravização indígena são consonantes, de certa forma, com fragmentos de cartas que afirmam que as Missões tinham outras funções além da missão evangelizadora, eram também locais de formação de trabalhadores. Por outro lado, não se tem notícias de comercialização dos indígenas nestas localidades, mas se tem indícios de trabalho sem remuneração, com o auxilio dos padres, como registra o trecho destas cartas.


[...] me parece dizer a Vossa Mercê que, mande logo ajuntar rodos os negros da fábrica, na oficina de Nossa Senhora da Encarnação do rio Paquy, na forma em que antes estavam e deixe na mina de João Martins, só aqueles que nela assistiam e para se ir continuando fazer salitre, nesta mina mandará Vossa mercê meter os índios que forem necessários, para trabalharem com os ditos negros,e todos mais enviará para Paquy e com toda brevidade fará levantar a casa da oficina, e pô-la capaz de se lavrar nela salitre. Assim que chegar o ajudante Luiz Antunes, mande Vossa Mercê ajuntar os índios do Paquy e das mais aldeias, e buscar os que forem necessários para conduzirem as terras para a fábrica do Paquy,[...]

“[…] que todas as vezes que o Administrador Antonio de Almeida Velho, ou o ajudante Luiz Antunes, mandar pedir a Vossa Paternidade índios para o trabalharem na fábrica de salitre,lhos remete Vossa Paternidade prontamente os que houverem miste [...]”.



Algumas crianças dizem que gostariam que a escola falasse melhor sobre os índios, seus costumes, a arte: música e dança e quando perguntados como seria essa atitude da escola e como seria esse discurso, eles respondem: que “Ensinasse a nóis como é que...[que eles vivem] ensinasse.... bem deles. Não matar, não xingar, ensinando música deles.[...] Falar a dança deles. O que existiu de índio, como vive...[...]” .
As crianças falam ainda sobre os sentimentos de amor e união, “[…] Antes vivia unido, tudo que tinha dividia, antes, e agora não, eles tinha amor e hoje só raiva, briga. Falam sobre a convivência com os animais: pássaros, cães e aves; revelam certa intimidade sobre o cuidado com os animais, e demonstram resquícios quando dizem que os indígenas conversam com seus animais de estimação assim como eles que também conversam com os animais com os quais convivem.
A liberdade é um valor destacado em quase todas as falas, para eles é muito importante que estejam sempre livres, em união e em paz “Viver livre , mas eu não queria que ninguém me matasse, era viver livre, em paz, caçando, pescando, os índio não prende ninguém, não, deixa livre.
O trabalho é também um valor transmitido pelos pais e pelo grupo familiar, uma vez que todos residem no mesmo espaço, daí a proveniência da denominação Aldeinha, as crianças convivem diariamente com o do trançado de cipó, a coleta e a quebra do ouricuri, uma convivência que faz lembrar o estudo de Barcellos (2006, p. 195), quando retrata algumas vivências dos Potiguara da Paraíba.

[…] enquanto as crianças brincam, choram, divertem-se, aprendem e participam de todo o processo de aprendizagem cultural: há menino em qualquer lado, em cima do forno, perto da massa, correndo para todo canto, pedindo para comer beiju, brigando com o colega... Desse modo, as crianças participam de todas as atividades e fica garantida a continuidade desse memorial.

De modo parecido, as crianças de Missão do Sahy e da Aldeinha convivem entre as atividades de trabalho, o trançado do cipó, e os estalos da quebra do ouricuri; assim como foi um dia a vida dos seus pais e avós. A participação das crianças nas atividades laborais de suas famílias, na religiosidade e no convívio do lar, é uma grande motivação para que se estabeleçam algumas redes geradoras de construções cognitivas, uma vez que este espaço livre, porém com alguns limites preestabelecidos pelo grupo familiar, é um grande laboratório de experimentação, construção e aquisição de conhecimentos.
A memória coletiva do grupo se mantem, mesmo cercada pelos elementos culturais midiáticos do presente, são os parentes mais velhos, principalmente nas áreas rurais, os responsáveis pela preservação das crenças e das imagens que representam sua família. É esta memória coletiva que ajuda na preservação dos valores morais, religiosos e culturais; e a convivência das crianças com os idosos, ouvindo e contando histórias, sobretudo as que acontecem no seio do grupo familiar, que resulta no fortalecimento das imagens, dos valores e da memória cultural do grupo,

“[...] pois é na medida em que a presença de um parente idoso está de algum modo impressa em tudo aquilo que nos revelou de um período ou de uma sociedade antiga, que ela se destaca em nossa memória, não como uma aparência física um pouco apagada mas com o relevo e a cor de um personagem que está no centro de todo um quadro que o resume e o condensa [...] ”. (Halbwachs.1990,p.66).

O pensamento de Halbwachs (1990), se encaixa perfeitamente nas narrativas de D. Edite, a Matriarca da Aldeinha, sobre o período de medos e incertezas em assumir a criação dos filhos após a viuvez precoce; sem condições de manter uma família com o mínimo de necessidades, ela recorre mesmo que inconscientemente ao passado e descobre as lembranças do trançado da cestaria, uma atividade do seu grupo familiar, que mesmo distante de sua realidade, estava ainda presente como herança coletiva

Uma conclusão ou seria uma nova Roda de Conversa?

O objetivo deste pequeno estudo sobre a transmissão de valores familiares para as crianças da Aldeinha foi transformar em registro fragmentos da história de vida dos moradores da comunidade de Aldeinha no povoado de Missão do Sahy, município de Senhor do Bonfim, Bahia. Em virtude de ser este grupo remanescente indígena e que guarda em sua família uma herança mais próxima dos antigos habitantes desta localidade.
Algumas vivências transmitidas pelo grupo chamaram atenção devido à sua especificidade, como, por exemplo, o casamento entre pessoas da mesma família, o trançado da cestaria - hoje mais atualizado tanto no designe quanto nos objetos, as casas de taipa, moradia dos filhos e netos construída em volta da casa materna, as formas de organização do trabalho dentre outras.
Tanta curiosidade acabou acarretando, também, uma grande frustração, pois, a princípio, acreditávamos que seria muito fácil obter informações sobre a comunidade, até porque é um local onde um grande fluxo de pessoas diariamente acorre em busca de objetos artesanais, construídos com o trançado do cipó, o que nos levou a acreditar que as fontes estariam facilmente disponíveis. Contudo, o tão esperado acervo de relatos escapou-nos por entre os dedos... As personagens foram se tornando escorregadias, ensimesmadas e não nos permitiram maior aprofundamento, não nos deixaram entrevistar e nem sequer conversar com as crianças e guardaram as informações que necessitávamos.
Este acontecimento imprevisto nos levou a pesquisar outras fontes, que tivessem alguma aproximação com o nosso objetivo e nos dessem subsídios para concluirmos o nosso trabalho. Em busca de fontes, encontramos alguns trabalhos acadêmicos: artigos, monografias e dissertações que nos auxiliaram na construção deste estudo.
Por fim, o que se sabe é que esta comunidade tem o comando de uma senhora de oitenta e poucos anos, que ao ficar viúva, retirou-se com seus filhos para uma área de mata ainda semi explorada, fazendo dali, o que se conhece hoje como Aldeia e /ou Aldeinha. Todas as famílias que ali residem foram constituídas pelos seus descendentes, realizando casamentos entre si, preservando assim o parentesco consanguíneo e os símbolos do grupo.
A vida econômica da Aldeinha é desenvolvida através de atividade extrativista do ouricuri, em potencial menor, e o artesanato na confecção de cestaria, móveis e objetos decorativos de cipó, um vegetal que crescia em abundância no entrono da aldeia, mas que pela grande utilização deste no trabalho e à medida que cresce a demanda pelos produtos, esta matéria-prima vem se distanciando geograficamente e se tornando a cada dia mais escassa.
As crianças da Aldeinha convivem com estas experiências, vivem entre o trançado do cipó, os estalos da quebra do ouricuri, a presença dos mais velhos e suas histórias e a escola, que mesmo em condições distantes do que seria desejado e necessário - não contemplando estas especificidades em seu currículo, faz vislumbrar um futuro diferente das vivências dos seus pais e avós.
Esta diferença tem sido potencializada pela inserção de outros valores, a nova visão de mundo que a tecnologia tem trazido, o volume de informações transmitido pela mídia, provavelmente tenha enfraquecido a transmissão da tradição destes grupos e talvez seja mais um dos motivos pelos quais se diga hoje que os mais jovens não valorizam o passado, que eles desconhecem a sua origem, que eles não respeitam os mais velhos e suas tradições.
As modificações têm ocorrido inclusive na arquitetura da aldeia, que foi contemplada com obras do Governo Federal, sendo construídas novas casas de alvenaria e com melhor infraestrutura, favorecendo certamente a qualidade de vida aos moradores desta pequena comunidade, preservando os locais e o espaço por eles escolhidos para viver.
Por fim, este trabalho nos deixa uma excelente informação, a de que é necessário o cuidado com as fontes, a sua preservação é vital para que se possa trazer à luz alguns acontecimentos que escapam da documentação oficial e que contam a história de muitos grupos que vivem em suas localidades, distante do burburinho e da liquidez das grandes cidades.


Referências


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CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura. FAPESP. 1992.

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HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Vertice, 1990

MACHADO, Paulo Batista. Notícias e Saudades da Villa Nova da Rainha, aliás, Senhor do Bonfim. Salvador: EDUNEB, 2007.

MELLATI, Júlio Cézar. Índios do Brasil. 7ª ed.- São Paulo: HUCITEC; 1994- ( Estudos Brasileiros; 14)

DA PAZ; Maria Gloria. Colégio Estadual de Missão do Sahy: os olhares de uma escola sobre um antigo aldeamento. 2004. Dissertação (Mestrado em Educação). UCAC, Quebec.

SANTOS, Mª das Graças Vieira. História da arte. 17ª edição – 5ª impressão. Editora Ática. São Paulo, 2009

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SPIX, Von Baptist J.; VON MARTIUS, Carl. F. P. Viagem pelo Brasil, 1817-1820. São Paulo: Melhoramentos, 1968

RIBEIRO, Darcy. . O processo civilizatório: estudos de antropologia da civilização, etapas da evolução sociocultural. 7. ed Petrópolis (RJ): Vozes, 1983.

NOVAIS, Jaqueline Oliveira, SILVA Raiane da Cruz. O trançado: a sua influencia na vida dos remanescentes indígenas de Missão do Sahy. Projeto. UNEB- Campus VII. 2010

WILLEKE, Frei Venâncio, Missões Franciscanas no Brasil (1500/1975), Petrópolis: Vozes, 1994.


Fontes orais


1. Dona Edite. (matriarca da Aldeinha)

2. Criança entrevistada por Celmar Simões em 2008.
Bola
Lua
Cachorrinho

Revisão
Cristiane B. Pinto- Professora graduada em Pedagogia -UNEB/Campus VII.
cristiane.zoeh@gmail.com